terça-feira, 10 de maio de 2011

DANUZA LEÃO - Perigosos pensamentos

Gostei desse texto. Sabemos que não dá para sair falando um monte de coisas que der na telha.
Uma ótima terça



Será possível que duas pessoas, por mais que se gostem, possam mesmo dizer o que pensam?



Dizem que tudo precisa ser dito, conversado, falado. Mas será mesmo? Se decretarem que um dia no ano, um só, as pessoas vão poder dizer o que lhes passar pela cabeça, o mundo explode em meia hora.
Será possível que duas pessoas, por mais que se gostem, possam mesmo dizer o que às vezes pensam? Não, ninguém suportaria conhecer o verdadeiro pensamento do outro, seja do amado, do amigo, do irmão.
Com maior ou menor facilidade, os impulsos podem ser contidos: a vontade de fumar, de se atirar da ponte, de dar um tiro no marido. Só não se consegue controlar os pensamentos.

Imagine se o papa, na hora de uma daquelas cerimônias do Vaticano em que ele diz sempre a mesma coisa -que está preocupado com alguma crise em algum país do mundo-, se distrair e pensar em sua dor na coluna, e como seria melhor estar na cama com um pijama confortável, sem aquelas roupas engomadas, sem o sapato vermelho de Armani. Nada demais, pois nem pecado é -acho. Mas será que a fé é suficiente para que ele não pense em coisas tão frívolas? E se Sua Santidade achar que pensar em conforto naquela hora é pecado, vai perguntar a quem? Será que papa se confessa?

Crianças, quando muito novinhas, falam tudo o que lhes passa pela cabeça, o que às vezes provoca grande mal-estar. São capazes de dizer para a madrinha que ela é feia, e o pior é quando contam coisas que viram, o que pode ser extremamente perigoso. Dois pés se tocando debaixo da mesa, uma passada de mão entre duas pessoas no corredor ou na cozinha. Elas percebem, e como não aprenderam ainda o que é censura, contam tudo o que viram ou ouviram -isso quando não acontece um sutilíssimo pequeno suborno para que não diga nada.

Dependendo da autoridade de quem suborna, ela até cumpre o acordo, e começa aí seu longo e doloroso aprendizado sobre a vida. Mas criança é criança, e se um adulto não consegue controlar seus pensamentos, ela não consegue controlar sua língua, e um dia conta tudo, e exatamente para quem não devia; eis a encrenca armada.

No final todos se entendem e acaba sobrando para ela, que -vão dizer- inventou tudo, e ainda vai levar pela vida a dúvida sobre se viu de verdade ou se imaginou. Terá visto mesmo ou é má e tem péssimos instintos, como disseram?

Mas de bobas as crianças não têm nada; quando fingem ter tido um pesadelo, entram no quarto dos pais à noite e veem os dois nus na cama, fazem as mais loucas fantasias sobre o que viram, mas não perguntam nem falam nada com ninguém, pois intuem que aquele é um terreno minado.

Eu não disse que os pensamentos são incontroláveis? A ideia era escrever uma crônica com princípio, meio e fim, mas é só a gente se distrair e eles vêm vindo sem rumo, sem freio, e da lembrança de ir à farmácia comprar vitamina C passa-se para remédios e para os genéricos, que têm as mesmas propriedades, custam mais barato, mas nenhum médico receita, para Brasília, a política, os escândalos, o Imposto de Renda que vem voraz, o contador que vai pedir um milhão de papéis impossíveis de serem encontrados, os novos portais, a realidade virtual, o futuro desconhecido, todas as coisas que não conseguimos compreender.
O jeito seria ter uma disciplina mental que impedisse nossos péssimos e inevitáveis pensamentos, mas será que alguém consegue? E será que alguém quer perder esse que talvez seja nosso único direito?
Fonte: Folha de São Paulo, 17 de abril de 2011. Caderno Cotidiano. 

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