sexta-feira, 29 de abril de 2011

A felicidade é sempre uma acomodação?

De tanto mexer nos papéis que tanto gosto, creio que posso dizer que de cada autor que eu conheço, eu tenho um texto ou um livro preferido. Essa crônica é o meu texto preferido da Marina Colasanti. Provoca uma boa reflexão e nos cutuca para não chegarmos a esse ponto.

Eu sei, mas não devia (Marina Colasanti)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(1972)

Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

Fonte: http://www.releituras.com/mcolasanti_eusei.asp
Home: http://www.releituras.com/index.asp

Sobre acomodação, num texto divertidíssimo de Luis Fernando Veríssimo, chamado O que cada um tem por dentro, o personagem afirma: "A felicidade é sempre uma acomodação". Tem todo um contexto e depois o reproduzo aqui. É que essa frase "A felicidade é sempre uma acomodação." me chamou demais a atenção.

"A felicidade é sempre uma acomodação."
"A felicidade é sempre uma acomodação."

Pense nisso.
Bjs









quarta-feira, 27 de abril de 2011

Kid Abelha - Nada tanto assim - há quanto tempo estamos com essa sensação?

Tenho aqui pra mim que essa música, Nada tanto assim, é de 1984. Eu a ouvi bastante no ônibus em Curitiba, em 1988. Minha memória musical associa músicas às décadas... eu era criança, adolescente, entre outras associações.

Naquela época também ouvida muito a música que tinha como nome Camila e como refrão "Camila, ha, Camiiiila, Camila", do Nenhum de nós. Gosto bastante das letras das músicas dos anos 80. Sem saudosismo, já saudosa.

Na música do Kid Abelha me impressionava, no alto dos meus 11 anos, essa coisa corrida, sem tempo, sem viver porque está sabendo tudo pelos outros e pelos panfletos. Triste vida. Pior é saber que passados 17 anos, a letra continua tão atual e certamente a vida tão mais corrida.  

Nada tanto assim

Só tenho tempo pras manchetes no metrô

E o que acontece na novela
Alguém me conta no corredor


Escolho os filmes que eu não vejo no elevador
Pelas estrelas que eu encontro
Na crítica do leitor

Eu tenho pressa
E tanta coisa me interessa
Mas nada tanto assim


Eu tenho pressa
E tanta coisa me interessa
Mas nada tanto assim


Só me concentro em apostilas
Coisa tão normal
Leio os roteiros de viagem
enquanto rola o comercial

Conheço quase o mundo inteiro
Por cartão postal
Eu sei de quase tudo um pouco
E quase tudo mal


Eu tenho pressa
E tanta coisa me interessa
Mas nada tanto assim


Eu tenho pressa
E tanta coisa me interessa
Mas nada tanto assim


Afinal, pra onde vamos correndo tanto? Quero exercer meu direito de ser slow. Slow food, slow reading, slow tudo.

Em breve farei uma postagem sobre slow reading.

Uma ótima semana a todos
A propósito tem um ditado que diz ''quanto mais devagar vou, antes chego". Vou ver se acho onde li isso.

Bjs, se cuidem.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Um homem de consciência - li no EM e nunca esqueci

O texto de hoje é um daqueles que eu queria resgatar, que eu li no ensino médio (EM) e nunca mais esqueci. Além desse do Lobato, apresentei um seminário, sobre o Presidente Negro, também no EM, que aliás já está na fila da re-leitura. 

Um homem de consciência


Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.

Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.

Mas João Teodoro acompanhava com aperto do coração o desaparecimento visível de sua Itaoca.

"Isto já foi muito melhor", dizia consigo. "Já teve três médicos bem bons - agora um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal dá serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca
está se acabando..."

João Teodoro entrou a incubar a idéia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

"É isso", deliberou lá por dentro. "Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui."

Um dia aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado. Nosso homem recebeu a notícia como se fosse uma porretada no crânio. Delegado ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, se julgava capaz de nada...

Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seríssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado - e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

João Teodoro caiu em meditação profunda. Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas. Pela madrugada botou-as num burro, montou seu cavalo magro e partiu.

- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?

- Vou-me embora - respondeu o retirante. - Verifiquei que Itaoca chegou mesmo ao fim.

- Mas, como? Agora que você está delegado?

- Justamente por isso. Terra em que João Teodoro chega a delegado eu não moro.
Adeus.
E sumiu.

Monteiro Lobato, Um homem de consciência, In Cidades mortas, Brasiliense

Como os textos lidos na infância e na adolescência nos marcam!
Na adolescência tive contato com literatura da boa por conta das professoras, especialmente uma, que nos fez ler inclusive teatro e encená-los.
Saudades.

Poema para um dia de quase chuva - Lya Luft

Foram-se os amores que tive


ou me tiveram:

partiram

num cortejo silencioso e iluminado.

O tempo me ensinou

a não acreditar demais na morte

nem desistir da vida: cultivo

alegrias num jardim

onde estamos eu, os sonhos idos,

os velhos amores e seus segredos.

E a esperança - que rebrilha

como pedrinhas de cor entre as raízes.

(Lya Luft - Secreta Mirada , 1997)