sábado, 25 de junho de 2011

WILLIAM WORDSWORTH - em Precious


Gostei desse poema no prefácio do livro Precious.
Espero que gostem.
Abç
Tânia



Se sois um daqueles cujo coração manteve puras

As formas santas da imaginação juvenil,

Estranho! estais avisado; e sabei, que o orgulho,

Ainda que disfarçado de sua própria majestade,

É pequenez; que quem sente desprezo

Por qualquer coisa viva, tem faculdades

Que jamais usou; aquele pensamento com ele

Está em sua infância. O homem, cujo olhar

está sempre em si mesmo, olha de fato para uma,

A menor das obras da natureza, uma que pode levar

O homem sábio àquele escárnio que a sabedoria considera

Ilegal, sempre. Ah, sede sábio!

Sabei que o verdadeiro conhecimento leva ao amor...

WILLIAM WORDSWORTH

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Leitura de feriado - 'Precious' na sala de espera do aeroporto




Ontem, dia 23 de junho, feriadão, enquanto esperava no aeroporto, não resisti à livraria. Acabei comprando dois livros que viraram filme. O primeiro que me chamou atenção na gôndola foi Preciosa, de Sapphire. A segunda aquisição foi O Leitor, de Bernhard Schlink. Assisti ao filme do segundo, ainda quero conferir o filme do primeiro.

Como no site do submarino não consta a resenha do livro Preciosahttp://www.submarino.com.br/produto/1/21785563/preciosa, transcrevo aqui o texto da capa.

"Adolescente do Harlem Claireece Precious Jones é obesa, analfabeta e está grávida pela segunda vez do próprio pai. Vítima de constantes abusos físicos e psicológicos por parte da mãe, alimenta a esperança de melhorar sua vida e a da filha. O encontro com uma professora batalhadora a apresentará a um mundo novo, no qual poderá expressar seus sentimentos e recuperar a voz e a dignidade. Uma história de luta, coragem e redenção". 

Agora reproduzo um trecho, chamemos de teaser, para provocá-lo a ler o livro. Como é uma cena de sala me aula, me flagrei dando risada na sala de espera. A maluca!

"A gente não tem lugar fixo na sala do Sr. Wicher, cada um pode sentar onde quiser. Eu sento na mesma carteira todo dia, no fundo, na última fila, perto da porta. Mesmo sabendo que a porta de trás fica trancada. Não falo nada de nada. Ele não fala comigo, agora. No primeiro dia ele falou:
- Turma, abram o livro na página 122, por favor.
Não me mexi. Ele disse:
-Srta. Jones, eu disse para abrir o livro na página 122.
E eu disse: 
- Filho da puta, não sô surda!
A turma toda caiu na gargalhada. ele ficou vermelho. Bateu a mão com força no livro e disse:
- Tente ter um pouco de disciplina.
Ele é m branco nanico e magricela, deve ter tipo 1,60m. Um branquelo xexelento, como diria minha mãe. Olhei para ele e disse:
- Eu também sei bater. Cê quer bater? - Aí peguei meu livro e bati com força. A turma riu mais um pouco. 
Ele disse: 
- Srta. Jnes, eu agradeceria se saísse da sala AGORA. 
E eu disse: 
- Não vô pra porra de lugar nenhum até a campanhia tocar. Vim aqui pra aprender matemática e você vai me ensinar. - Ele parecia uma cachorra que acabou de ser atropelada por um trem. Não sabia o que fazer. Ele tentou recuperar a pose, bancar o maneiro, disse: 
- Bom, se quer aprender, acalme-se.
Falei: 
- Eu tô calma. 
Ele disse:
- Se quer aprender, cale a boca e abra o livro. 
O rosto dele tava vermelho, ele tava tremendo. Eu dei pra trás. Ganhei briga. Acho.
Eu não queria prejudicar ele nem deixar ele sem graça daquele jeito, sae. Mas não podia deixar ele saber, que a página 122 era igual à página 152, 22, 3, 6, 5 - todas as página era igual pra mim". 

*****

Existe bastante para ser comentado. Gostei muito da tradução de Alves Calado, que recriou perfeitamente em português, a linguagem da personagem analfabeta. 

A personagem principal, gorda, negra e analfabeta, tem lá seus preconceitos também contra brancos, chicanos, lésbicas, entre outros. Mas quando você analisa todo o contexto de exclusão, as condições de humilhação e abuso sexual em casa, você vê que é apenas uma criança grande ou uma criança crescida. 

Aprecio livros e filmes que contam histórias de escolas, alunos e situações em sala de aula. Se estudar para alguns é algo chato, para outros torna-se um verdadeiro desafio. 

Conflito em sala de aula sempre existe. O interessante nesse trecho é que o professor pode interpretar a falta de ação de Precious como preguiça. Mas logo sabemos que ela está tentando se proteger, uma vez que não consegue reconhecer os números e as letras. Só achei um tanto incoerente porque ela diz recorrentemente que é boa em matemática e depois uma professora (na tentativa de trazê-la de volta para escola) afirma que o professor de matemática também falou que ela é boa em matemática. Como, se não é capaz de reconhecer os números?     

Apesar desse pequeno estranhamento, estou na metade do livro, de narrativa rápida e envolvente. Sei que a professora Blue Rain ajudará Precious e externar seus sentimentos e assim provocará uma mudança na vida dessa personagem. Estou gostando bastante e na expectativa do desenrolar da história.

Recomendo.

******

 
Obs: Adorei o filme O Leitor. Já postei sobre ele há algum tempo: http://leitorvelhonavegador.blogspot.com/2009/12/filme-o-leitor.html Creio que depois de ler o livro, vai me dar algum comichão de comentar algo mais.
Keep blogging, keep reading.
Grande abraço
Tânia        
     


   

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O verbo For - João Ubaldo Ribeiro

A nossa língua é uma questão de paixão, apesar disso em muitos momentos ela deve ser cobrada e sistematizada. O vestibular é um deles.  
Diga o que você achou da conjugação do verbo For.
Mais um texto muito legal do João Ubaldo Ribeiro.
Grande abraço
Tânia

O verbo For - João Ubaldo Ribeiro

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).

O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.

Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.

— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.

Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.

— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!

Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.

O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:

— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!

— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.

— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?

— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...

— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!

Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.

— Esse "for" aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.

— Verbo for.

— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

Esta crônica foi publicada no jornal "O Globo" (e em outros jornais) na edição de domingo, 13 de setembro de 1998 e integra o livro "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20.

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De blog para blog. Esse texto foi compartilhado pela Stella Maris no endereço:  

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Uma defesa do "erro" de português - Hélio Schwartsman

Este é outro texto sobre a polêmica do livro do MEC, que merece ser lido.
Gostei muito. Espero que gostem.
Grande abraço
Tânia




Uma defesa do "erro" de português - Hélio schwartsman

 
O pessoal pegaram pesado. Da esquerda à direita, passando por vários amigos meus, a imprensa foi unânime em atacar o livro didático "Por uma Vida Melhor", de Heloísa Ramos. O suposto pecado da obra, que é distribuída pelo Programa do Livro Didático, do Ministério da Educação, é afirmar que construções do tipo "nós pega o peixe" ou "os livro ilustrado mais interessante estão emprestado" não constituem exatamente erros, sendo mais bem descritas como "inadequadas" em determinados "contextos".

Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a anarquia linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar igualzinho ao Lula. Outros, mais comedidos, apontaram a temeridade pedagógica de dizer a um aluno que ignorar a concordância não constitui erro.

Eu mesmo faria coro aos moderados, não fosse o fato de que, do ponto de vista da linguística --e não o da pedagogia ou da gramática normativa--, a posição da professora Heloísa Ramos é corretíssima, ainda que a autora possa ter sido inábil ao expô-la.
Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados, tudo não passa de um grande mal-entendido. Para tentar compreender melhor o que está por trás dessa confusão, é importante ressaltar a diferença entre a perspectiva da linguística, ciência que tem por objeto a linguagem humana em seus múltiplos aspectos, e a da gramática normativa, que arrola as regras estilísticas abonadas por um determinado grupo de usuários do idioma numa determinada época (as elites brancas de olhos azuis, se é lícito utilizar a imagem consagrada pelo ex-governador de São Paulo Claúdio Lembo). Podemos dizer que a segunda está para a primeira assim como a pesquisa da etiqueta da corte bizantina está para o estudo da História. Daí não decorre, é claro, que devamos deixar de examinar a etiqueta ou ignorar suas prescrições, em especial se frequentarmos a corte do "basileus", mas é importante ter em mente que a diferença de escopo impõe duas lógicas muito diferentes.

Se, na visão da gramática normativa, deixar de fazer uma flexão plural ou apor uma vírgula entre o sujeito e o predicado constituem crimes inafiançáveis, na perspectiva da linguística nada disso faz muito sentido. Mas prossigamos com um pouco mais de vagar. Se os linguistas não lidam com concordâncias e ortografia o que eles fazem? Seria temerário responder por todo um ramo do saber que ainda por cima se divide em várias escolas rivais. Mas, assumindo o ônus de favorecer uma dessas correntes, eu diria que a linguística está preocupada em apontar os princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 - 1294), o "pai" do empirismo e "avô" do método científico, mas foi modernamente desenvolvida e popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky (1928 -).

Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma, diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o adquira quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática completa para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças falantes.

O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" ("poverty of the stimulus"). Em grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser apresentadas a contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico. É a tal da Gramática Universal.

O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai algumas consequências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de teclados de computador fracassaram. Os bichos não desenvolveram competência para, a partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.

Outro ponto importante e que é o que nos interessa aqui diz respeito ao domínio da gramática. Se ela é inata e todos a possuímos como um item de fábrica, não faz muito sentido classificar como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que há de menos essencial, para não dizer aborrecido, no complexo fenômeno da linguagem. Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz mesmo tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós vamos". Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do que uma que ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.

Podemos ir ainda mais longe e, como o linguista Derek Bickerton (1925 -), postular que existem situações em que é a gramática normativa que está "errada". Isso ocorre quando as regras estilísticas contrariam as normas inatas que nos são acessíveis através das gramáticas das línguas crioulas. No final acabamos nos acostumando e seguimos os prescricionistas, mas penamos um pouco na hora de aprender. Estruturas em que as crianças "erram" com maior frequência (verbos irregulares, dupla negação etc.) são muito provavelmente pontos em que estilo e conexões neuronais estão em desacordo.

Mais ainda, elidir flexões, substituindo-as por outros marcadores, como artigos, posição na frase etc., é um fenômeno arquiconhecido da evolução linguística. Foi, aliás, através dele que os cidadãos romanos das províncias foram deixando de dizer as declinações do latim clássico, num processo que acabou resultando no português e em todas as demais línguas românicas.

A depender do zelo idiomático de meus colegas da imprensa, ainda estaríamos todos falando o mais castiço protoindo-europeu.

Não sei se algum professor da rede pública aproveita o livro de Heloísa Ramos para levar os alunos a refletir sobre a linguagem, mas me parece uma covardia privá-los dessa possibilidade apenas para preservar nossas arbitrárias categorias de certo e errado.

Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/916634-uma-defesa-do-erro-de-portugues.shtml 

segunda-feira, 20 de junho de 2011

O texto de Elaine Brum sobre 'os livro' do MEC


Participei na sexta-feira passada de um debate na Rádio UEM sobre a polêmica dos 'livro do MEC'. Eu estava agitadinha e acanhada no início, mas depois peguei o embalo e adorei a experiência. 

Nós, professores de português e linguística nos Cursos de Letras, costumamos apontar quando a mídia trata o assunto 'língua portuguesa' de maneira retrógrada. Entendo que mostrar o que é abordado de forma coerente pela é igualmente importante. Por isso, reproduzo aqui o texto de Elaine Brum. 

Para mim, o texto dela e o de um jornalista da Folha de S. Paulo (depois reproduzo) evidenciam que já há uma compreensão melhor dos fenômenos na língua por parte desses profissionais. Resta torcer para que o paradigma rançoso de outrora seja substituído por essa visão muito mais condizente com a língua e seus fatos.   
Analisem: 
O que “os livro” contam?
Algumas dúvidas sobre a polêmica do livro didático

ELIANE BRUM

Li o capítulo do livro “Por uma vida melhor”, que vem causando polêmica há mais de uma semana na imprensa e na comunidade acadêmica. O livro é distribuído pelo Ministério da Educação para ser utilizado pelas escolas públicas na Educação de Jovens e Adultos e foi coordenado pela Ação Educativa – ONG pela qual tenho grande respeito pelo trabalho que realiza no reconhecimento e ampliação das vozes da cultura, especialmente a das periferias. Copio o trecho da discórdia aqui – e sugiro que o leitor leia o capítulo inteiro, intitulado “Falar é diferente de escrever”. É importante ler o texto na fonte para que possamos pensar juntos e para que cada um possa formar sua própria opinião.
O trecho que gerou a polêmica é este:
 “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Você acha que o autor dessa frase se refere a um livro ou a mais de um livro? Vejamos:
O fato de haver a palavra os (plural) indica que se trata de mais de um livro. Na variedade popular, basta que esse primeiro termo esteja no plural para indicar mais de um referente. Reescrevendo a frase no padrão da norma culta, teremos:
 Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados.
Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro?’. Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.”
Ao ler o capítulo inteiro, é fácil perceber que, em nenhum momento, os autores do livro afirmam que não se deve ensinar e aprender a “norma culta” da língua. Pelo contrário. Eles se dedicam a ensiná-la. Logo na primeira página, é dito: “Você, que é falante nativo de português, aprendeu sua língua materna espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor. O aprendizado da língua escrita, porém, não foi assim, pois exige um aprendizado formal. Ele ocorre intencionalmente: alguém se dispõe a ensinar e alguém se dispõe a aprender”. Mais adiante, os autores estimulam o aluno a ler e a escrever – e a insistir nisso, mesmo que possa parecer difícil, porque é lendo e escrevendo que se aprende a ler e a escrever.
Não há, portanto, nenhum complô contra a língua portuguesa, como algumas intervenções fizeram parecer. Nem mesmo caberia tanto barulho, não fosse uma ótima oportunidade para pensarmos sobre a língua. E o debate das ideias sempre vale a pena. É mais interessante, porém, quando partimos das dúvidas – e não das certezas. Não custa perguntar uma vez por dia a si mesmo: “Será que eu estou certo?”. Ninguém está velho demais, ou sábio demais, ou tem diplomas demais que não possa duvidar e aprender. Um professor que pensa que sabe tudo não é um professor – é um dogma. E dogmas cabem nas religiões e nas ditaduras – e não na escola e na democracia.
Há algumas afirmações no texto que, em minha opinião, merecem uma reflexão mais atenta. E o trecho de “Os livro” é apenas uma delas. Em outro momento, os autores dizem o seguinte:
“Em primeiro lugar, não há um único jeito de falar e escrever. A língua portuguesa apresenta muitas variantes, ou seja, pode se manifestar de diferentes formas. Há variantes regionais, próprias de cada região do país. (...) Essas variantes também podem ser de origem social. As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio — vale lembrar que a língua é um instrumento de poder —, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular. Contudo, é importante saber o seguinte: as duas variantes são eficientes como meios de comunicação. A classe dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por seu uso ser um sinal de prestígio. Nesse sentido, é comum que se atribua um preconceito social em relação à variante popular, usada pela maioria dos brasileiros. Esse preconceito não é de razão linguística, mas social. Por isso, um falante deve dominar as diversas variantes porque cada uma tem seu lugar na comunicação cotidiana”.
É verdade que a língua pode ser um instrumento de dominação – e foi ao longo da História não só do Brasil, mas do mundo. O português mesmo é a língua dos colonizadores – e foi sendo transformado por falantes vindos de geografias e de experiências diversas ao longo dos séculos, num constante movimento. Assim como a apropriação da palavra escrita e a ampliação do acesso à escola estão na base de qualquer processo igualitário. Também é verdade que os pobres sempre foram discriminados por tropeçarem nas palavras e na concordância. Basta lembrar as piadas que faziam com Lula porque no início de sua carreira política ele falava “menas” – em vez de menos. A solução para a discriminação, sempre uma indignidade, não foi afirmar que “menas” também era correto.
O que discordo no capítulo polêmico é exatamente o caminho que o livro propõe para a inclusão. Primeiro, acho complicado afirmar que usar “a norma culta” ou a “norma popular” é uma questão de ocasião. Como neste trecho: “A norma culta existe tanto na linguagem escrita como na linguagem oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.
Aceitar que está correto dizer “Os livro” – ou que basta aprender onde cabe a “norma popular” e onde é mais apropriada a “culta” – pode significar aceitar a dominação e acolher o preconceito. Quem fala e escreve “os livro” o faz não por escolha, mas porque lhe foi roubado o acesso à educação. É verdade que quem assim se expressa supostamente comunica o mesmo que quem respeita a concordância. E o objetivo maior da língua é permitir a comunicação. Mas, se você afirma que a concordância ou não é apenas uma questão de ocasião, você corre o risco de estar acolhendo a discriminação – e não incluindo de fato.

A inclusão real só vai acontecer quando a escola pública oferecer a mesma qualidade de ensino recebida pelos mais ricos nas melhores escolas privadas. Quando o Estado for capaz de garantir a mesma base de conhecimento para que cada um desenvolva suas potencialidades. E este é o problema do país: uma educação pública de péssima qualidade, com adolescentes que chegam ao ensino médio sem condições de interpretar um texto – e muitas vezes incapazes até mesmo de ler um texto.
O que os mais pobres precisam não é que alguém lhes diga que expressões como “os livro” é bom português, mas sim uma escola que ensine de fato – e não que finja ser capaz de ensinar. Para dizer “os livro” ninguém precisa de escola. É óbvio que a língua, como coisa viva que é, também é política. Mas a política de inclusão contida no texto do livro pode estar equivocada. E a discussão sobre o tema, seja de um lado ou de outro, poderia ser mais interessante se fosse menos sobre política – e mais sobre educação.
Dominar as regras é importante até para poder quebrá-las. É preciso conhecer profundamente a origem, a estrutura da língua, para poder brincar com ela. Você precisa partir do parâmetro para reinventá-lo na escrita. Quando o personagem de um romance que se passa na periferia de uma grande cidade diz “Os livro”, seu autor sabe que a concordância correta é “os livros”. Quando ele escolhe colocar essa construção na boca do personagem, há uma intenção literária. Ele está nos dizendo algo muito mais profundo do que uma mera equivalência poderia sugerir. Se você elimina essa possibilidade, pode estar eliminando a denúncia da dominação ou a possibilidade do estranhamento. (Ao final do capítulo polêmico, aliás, há um texto bem interessante sobre a visão de mundo contida na escolha da linguagem escrita, desenvolvido a partir do poema “Migna terra”, de Juó Bananére.)
Quando alguém é discriminado por dizer “Os livro” não me parece ser “um preconceito linguístico”, como os autores afirmam, mas um preconceito. Ponto. Ninguém tem o direito de zombar de outro porque ele não conhece as regras gramaticais – ao contrário, deve ajudá-lo a encontrar os meios de aprender. E é nesse ponto que me parece que pode existir também um equívoco na compreensão do que é a linguagem popular.
Não sou linguista, nem gramática, nem professora de português. Estou sempre estudando para não cometer erros ao escrever, mais ainda agora com a nova ortografia. Mas, mesmo com a gramática e o dicionário já bem gastos pelo uso, às vezes me acontece de atropelar a língua. Acho, porém, que entendo um pouco da linguagem das ruas. E nisso tenho algo a dizer.
Percorro o Brasil há mais de 20 anos ouvindo histórias de gente – e muitos dos que escutei eram analfabetos. Sempre defendo que a principal ferramenta do repórter é a escuta. E é justamente esta escuta que me ensinou que a linguagem popular é muito variada – e muito, muito sofisticada mesmo. Seguidas vezes, meu desafio é apenas escutar com redobrada atenção para reproduzir pela escrita o que foi inventado pela fala. Porque há uma recriação de mundo em cada canto, contida nas pessoas a partir de experiências as mais diversas. É essa sofisticação da linguagem que me abre as portas para o universo que me propus a contar.
Com frequência eu penso, diante de um analfabeto nos confins do Brasil: “Nossa! Isso é literatura pela boca!”. E é. Guimarães Rosa não reinventou a língua portuguesa apenas porque era um gênio. Acredito que era um gênio – mas acredito também que ele bebeu em genialidades orais do sertão do qual se apropriou como poucos.
Então, acreditar que a linguagem popular (ou “variante popular” ou “norma popular”) é dizer coisas toscas como “os livro” pode significar subestimar a riqueza e a diversidade de expressão do povo. Sempre lamentei que as pessoas que me contavam suas histórias não tivessem tido acesso à escola, devido à abissal desigualdade do Brasil, para que não precisassem de mim para transformar em escrita as belas construções, os achados de linguagem que saíam de sua boca.
Nada a ver com “os livro”. Posso estar errada, mas me arrisco a afirmar que o povo brasileiro é muito melhor do que isso. Se o Estado algum dia garantir escola pública de qualidade e professores qualificados, bem pagos e dispostos a ensinar, o português será uma língua muito mais rica também na expressão escrita – como já é na oral. 
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI235334-15230,00.html
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Portanto, esse texto foi para mostrar que a mídia não está em uníssono.
Grande abraço
Tânia