quinta-feira, 9 de setembro de 2010
O Leitor, os Óculos e o Rei Midas
Ah, quando foi que descobri que precisava usar óculos? Foi numa sala de aula. Todos os colegas completavam a leitura oral, que a professora fazia com algumas falhas (porque ela mesma não estava enxergando bem). Virei-me para o colega ao lado e pedi seus óculos emprestados por um momento. Ali tive a certeza de que não era o retroprojetor que estava desregulado.
Esta semana, relendo Manguel e seu História da Leitura (1997), já citado aqui, depararei com este trecho trágico:
"Um sexto de toda a humanidade é míope; entre os leitores, a proporção é muito maior, perto de 24%. Aristóteles, Lutero, Samuel Pepys, Schopenhauer, Goethe, Schiller, Keats, Tennyson, o dr. Johnson, Alexander Pope, Quevedo, Wordsworth, Dante Gabriel Rosseti, Elizabeth Barret Browning, Kipling, Edward Lear, Dorothy L. Sayers, Yeats, Unamuno, Rabindranath Tagore, James Joyce – todos tinham visão fraca. Em muitas pessoas essa condição piora, e um notável número de leitores famosos ficou cego na velhice, de Homero a Milton, James Thurber e Jorge Luis Borges. O escritor argentino, que começou a perder a visão no início da década de 1930 e foi nomeado diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires em 1955, quando não enxergava mais, comentou o destino peculiar do leitor debilitado a quem um dia concedem o reino dos livros:
Que ninguém avilte com lágrimas ou reprove
Esta declaração da habilidade de Deus
Que em sua magnífica
Deu-me escuridão e livros ao mesmo tempo.
Borges comparava o destino desse leitor no mundo borrado de "vagas cinzas pálidas semelhantes a olvido e sono" ao destino do Rei Midas, condenado a morrer de fome e sede cercado por comida e bebida. Um episódio da série de televisão Além da imaginação trata de um desastre nuclear. Todos os livros do mundo estão agora à sua disposição; então, acidentalmente, ele quebra seus óculos". (p. 325-326)
Por enquanto, posso me dar ao luxo de quebrar os óculos porque enxergo perfeitamente de perto. Porém, o oftalmologista explicou que fatalmente, dentro de uns 10 anos, terei que usar multifocais.
Quando Borges perdeu a visão, foi Manguel quem lhe leu tantas vezes.
Vejamos um trecho dessa experiência:
"Ouvindo-me ler uma história de Kipling, "Beyond the pale" [Fora dos limites], Borges interrompeu-me após uma cena em que uma viúva hindu manda uma mensagem a seu amante, feita de diferentes objetos reunidos numa trouxa. Chamou a atenção para a adequação poética disso e perguntou-se em voz alta se Kipling teria inventado aquela linguagem concreta e, não obstante, simbólica. Depois, como que consultando uma biblioteca mental, comparou-a com a "linguagem filosófica" de John Wilkins, na qual cada palavra é uma definição de si mesma. Por exemplo, Borges observou que a palavra salmão não nos diz nada sobre o objeto que representa; zana, a palavra correspondente na língua de Wilkins, baseada em categorias preestabelecidas, significa "um peixe de rio escamoso e de carne vermelha": z para peixe, za para peixe de rio, zan para peixe de rio escamoso e de carne vermelha. Ler para Borges resultava sempre em um novo embaralhamento mental dos meus próprios livros; naquela noite, Kipling e Wilkins ficaram lado a lado na mesma estante imaginária". (MANGUEL, 1997, p.31).
Ler para alguém já foi prática mais comum. Hoje em dia, preferimos ler e permitimos que nos leiam raramente ou em casos como o de Borges.
O filme "O leitor" também mostra a experiência de uma pessoa ler para outra. Mas isso é para outro post.
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Maneiro o blog, gostei do lance das citações dentro do post. Sobre óculos, fiz um post semelhante um tempo atrás:
ResponderExcluirhttp://pensesobre.wordpress.com/2010/01/14/nitidez/
abraço,
Wesley.
Olá Wesley!!!
ResponderExcluirQue bom que você curtiu. É meu primeiro blog e estou buscando criar o meu estilo de compartilhar as leituras.
Eu coloco as citações para dar aquele gostinho do conteúdo do livro. Procuro trazer os trechos que mais me impressionam e que mais gosto porque eles podem ser mais convidativos que os textos de orelha e capa.
Obrigada por comentar e visite sempre.
Abç
Tânia