terça-feira, 20 de outubro de 2009

Trecho de Uma história da leitura, de Manguel


Todo o mundo, e tudo que há no mundo, é passível de leitura.
Este trecho mostra como a leitura pode ser de um livro, de letras, de corpos, de natureza, contribuindo para alargar a nossa compreensão de leitura.

"Os leitores de livros, uma família em que eu estava entrando sem saber (sempre achamos que estamos sozinhos em cada descoberta e que cada experiência, da morte ao nascimento, é aterrorizantemente única), ampliam ou concentram uma função comum a todos nós. Ler as letras de uma página é apenas um de seus muitos disfarces. O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão lendo o desenho intricado de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê os sinais de alegria, medo ou admiração; o adivinho chinês lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando pacientes a ler seus sonhos perturbadores, o pescador havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu – todos eles compartilham com s leitores a arte de decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres humanos – a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo, ou pelos deuses – o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso."

Alberto Manguel. In: Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997).

Um comentário: