sábado, 16 de abril de 2011

Um menino aprende a ler - Gilberto Amado

Adoro colecionar relatos de leitura. Os aprendizados da infância. Segue hoje outro relato de aprendizagem das palavras, das pronúncias e da leitura.

Minha mãe sentava-se a coser e retinha-me de livro na mão, ao lado dela, ao pé da máquina de costura. O livro tinha numa página a figura de um bicho carcunda ao lado do qual, em letras graúdas, destacava-se esta palavra: ESTÔMAGO. Depois de soletrar "es-to-ma-go", pronunciei "estómago". Eu havia pronunciado bem as duas primeiras palavras que li, camelo e dromedário. Mas estômago, pronunciei estómago. Minha mãe, bonita como só pode ser mãe jovem para filho pequeno, o rosto alvíssimo, os cabelos enrolados no pescoço, parou a costura e me fitou de fazer mêdo: "Gilberto!" Estremeci. "Estómago? Leia de nôvo, soletre." Soletrei, repeti: "Estomágo." Foi o diabo.
     
Jamais tinha ouvido, ao que lembrasse então, a palavra estômago. A cozinheira, o estribeiro, os criados, Bernanda, diziam "estambo". "Estou com uma dor na bôca do estambo..." "Meu estambo está tinindo..." Meus pais teriam pronunciado direito na minha presença, mas eu não me lembrava. E criança, como o povo, sempre que pode repele o proparoxítono.

A língua portuguêsa, em tão grande parte de formação literária, absorveu as formas eruditas preservadas nos conventos. Não foi o uso popular que a linguagem passou à côrte e aos mosteiros. No português, no espanhol e no toscano, o povo não teve tempo de mastigar o esdrúxulo, que ficou assim encoscorando a prosódia. O francês o destruiu completamente. "As palavras francesas não nasceram dos vocábulos latinos escritos, mas dos falados." A ausência em França de um Dante, de um grande clássico que fixasse a língua de uma vez, deixou-a mais tempo na bôca do povo. No patoá, o esdrúxulo morreu. Por influência cultural prevaleceu no nosso falar. Mas sempre que pode, o povo acaba com êle. É uma diferença extraordinária. A sílaba tônica não empola a palavra no meio. A criança francesa pode, desde cedo, pronunciar polissílabo.

Uma vez em Paris, na casa de apartamentos em que morava, esta cena de Itaporanga, esta minha pronuncia da palavra estômago, me veio de súbito à memória fazendo-me rir, de um riso tão diferente que levou a pessoa, em cuja presença me achava, a perguntar: "Por que ri assim?" Evidentemente não pude explicar. Nessa casa havia um pequenote, sobrinho da encarregada, Janot, engraçado e vivo. Eu brincava sempre com êle ao sair e ao entrar, quando o achava ali, junto da concierge. Trazia-lhe bombons, presentinhos. Nesse dia o pequenote, olhando-me com especial interêsse, disse: "Hoje é meu aniversário!" "Que queres que te traga, Janot?" Debatemos o problema brinquedo; êle fixou-se afinal num chemin de fer. Prometi. "Mas veja bem, monsieur Amadô, qu'il soit mécanique!" Tive o súbito riso a que aludi. Estômago, estomac... mecânico, mécanique. O garotinho francês solta a palavra tôda na cadência correntia da prosódia sem ter de arquear o acento na corcova do esdrúxulo.

(De História da Minha Infância, 3ªed., Rio de Janeiro, 1966, p.42-44. In: CARDOSO, W. & CUNHA, C. Estilística e gramática histórica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 198. (p.127 a 150).    

*atentem para a acentuação antiguinha.

Bom fds
Bjs      

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