Este texto de Diogo Mainardi foi publicado na Revista Veja, de 3 de abril de 2002. Não sou sua fã, muito pelo contrário. Para mim ele é um chato de galochas. Não gosto também dessa visão que ele tem da língua portuguesa, de que os falantes a desrespeitam e de que passamos por uma espécie de revolução chinesa, mas gosto da parte do texto quando se refere ao seu vício de ler, e da busca insana por algo para ler.
TODO O APOIO AO MST
"No sítio de uns amigos, na falta de um MST, minha maior diversão era ver a dona do lugar espremer bernes entranhados em seus cachorros"
Depois do ataque à fazenda de Fernando Henrique Cardoso, todo mundo virou as costas para o MST. Até o PT. É nesse momento de grave dificuldade que eu me sinto no dever de me solidarizar com os sem-terra. Apóio-os incondicionalmente. Enquanto eles invadiam a fazenda do presidente, eu passava o fim de semana no sítio de uns amigos. Aborrecia-me tanto com a vida campestre que a minha única esperança era que 300 manifestantes, armados com enxadas, ocupassem nossa casa e aliviassem a monotonia, embriagando-se com vinho francês, fumando charuto cubano, dançando forró, telefonando para os parentes, tacando fogo nos tratores e rindo à toa com o quadro do chapéu do Programa Raul Gil. O problema é que, ao contrário da fazenda do presidente, o sítio em que eu estava hospedado não tinha vinho francês, nem charutos cubanos, nem telefone, nem tratores, nem TV. Só tinha rede. Eu ficava o tempo todo deitado na rede. Na falta do MST, minha maior diversão era ver a dona do sítio espremer bernes entranhados em seus cachorros.
Sou viciado em jornais e revistas. Não consigo passar um dia inteiro sem lê-los. No sábado, infelizmente, o único jornal disponível no vilarejo mais próximo do sítio era o Extra. Você não tem idéia de como o Extra é ruim. Por causa de meu vício, porém, acabei lendo-o de ponta a ponta. Fiz até as palavras cruzadas. Nas palavras cruzadas do Extra, aparece, por exemplo, o desenho de um cavalo. Você tem de preencher os quadradinhos horizontais com C-A-V-A-L-O. Já nas verticais há o desenho de um carro de corrida. Você enfia lá: C-A-R-R-O-D-E-C-O-R-R-I-D-A. Estimulado por esse duro desafio, no dia seguinte, além do Extra, comprei a revista Coquetel, em sua versão mais difícil. Eu não fazia as palavras cruzadas da revista Coquetel havia décadas. Tudo continuava perfeitamente igual. Figura bíblica? Noé. Interjeição mineira? Uai. Muro, em francês? Mur. Começo, origem? Incunábulo. Cinema? A sétima arte.
Somos muito fracos em matéria de palavras. Aliás, temos problemas com a língua portuguesa em geral. Ela teima em não entrar em nossa cabeça. Prova disso é que, juntamente com Extra e Coquetel, o jornaleiro me vendeu um encarte especial de O Globo em que Pasquale Cipro Neto ensina umas regrinhas básicas sobre prefixos, adjetivos compostos e crases. Ele explica que é errado dizer coisas como "Ronaldo driblou ao zagueiro", "a camisa verde-amarelo" e "bem-vindo à São Paulo". É como se nenhum brasileiro tivesse completado a sétima série. Dizem que o MST se inspira no modelo chinês. Na China, durante a Revolução Cultural, escolas foram fechadas, livros queimados e professores assassinados ou mandados para trabalhos forçados no campo e nas fábricas. A idéia era reeducar a elite intelectual do país, acusada de estar contaminada com valores burgueses. O ensino foi nivelado por baixo, com o uso de uma língua simplificada, dotada de menos caracteres, que criou uma massa de proletários semi-alfabetizados, prontos para decorar o livro vermelho, mas incapazes de entender um artigo de jornal. Talvez nem um artigo do Extra. Mas o que eu quero dizer é que, no Brasil, nós também nivelamos o ensino por baixo, com um português simplificado, de vocabulário cada vez mais pobre e gramática cada vez mais torta. O Brasil passou por uma Revolução Cultural e não percebeu. Aqui se esqueceram da reforma agrária, claro. Mas sobraram os bernes.
Diogo Mainardi. Revista Veja. 3 de abril de 2002.
Ah, concordo com o que ele diz quanto ao trabalho do Pasquale.
Abç
Tânia
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