sábado, 18 de setembro de 2010

Relatos de primeiras leituras

Hoje vou discutir um pouquinho a questão das primeiras letras.

Eu não fui aquele tipo de criança que aprende a ler antes de ir para a escola, que cria suas hipóteses de leitura antes de um saber formal. Mas lembro muito bem da primeira apresentação das letras.
A professora tinha no quadro a sequência do alfabeto, as letras maiúsculas seguidas das minúsculas. E fazia que a classe repetisse e depois usou o clássico método 'b' com 'a' 'ba', 'b' com 'e', 'be'...
Para mim a alfabetização foi um processo tranquilo e prazeroso. Eu tinha muita curiosidade em relação aos livros e, principalmente, gibis.

Lembro da primeira vez em que vi uma pessoa com uma caneta na mão. Eram anotações da compra no mercadinho, ou seja, o comerciante estava passando a régua na conta e, eu, com os olhos levemente inclinados por sobre o balcão, fiquei com o olhar fixo, seguindo o movimento que fazia a caneta girar rapidamente.    

Lembro também que eu gostava da cartilha. Gostava dos personagens, Ana e Beto. E fiz todas as atividades de pontilhado, até ser capaz de fazer as letras à mão livre.

Pelo fato de ainda me admirar muito com o processo de aquisição da linguagem, eu gosto de colecionar a história de outros leitores em sua fase de aprender a ler. 

Este relato abaixo é da escritora Ana Maria Machado, no livro Como e por que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo. Essa história que ela conta das primeiras leituras é apenas um pedacinho da delícia que é este livro todo e aproveito para recomendar esta leitura porque o livro é, de fato, encantador. 


"Não sei direito com que idade eu estava, mas era bem pequena. Mal tinha altura bastante para poder apoiar o queixo em cima da escrivaninha de meu pai. Diante dele sentado escrevendo, eu vinha pelo outro lado, levantava os braços até a altura dos ombros, pousava as mãos uma por cima da outra no tampo da mesa, erguia de leve o pescoço e apoiava a cabeça sobre elas. A ideia era ficar embevecida, contemplando de frente o trabalho paterno. Bem apaixonadinha por ele, como já explicava Freud, mas eu descobriria anos depois.


Só que no meio do caminho tinha outra coisa. Bem diante dos meus olhos, na beirada da mesa. Uma pequena escultura de bronze, esverdeada e pesada, numa base de pedra preta e lustrosa. Dois cavalos. Mais exatamente, um cavalo esquelético seguido por um burrico roliço. Montado no primeiro, e ainda mais magrelo, um tristonho cavaleiro de barbicha segurava uma lança numa mão e um escudo na outra. Escarapachado no jumento, um gorducho risonho, de braço estendido para o alto, erguia o chapéu como quem dá vivas.

Um dia perguntei quem eram.

- O da frente se chama Dom Quixote. O outro, Sancho Pança.

- Quem são eles?

- Ih, é uma história comprida... Um dia eu conto.

Em seguida, eu quis saber onde eles moravam. Se era ali perto de casa, em Santa Tereza, no centro do Rio. Ou em Petrópolis, onde moravam meus avós e a gente às vezes passava uns dias, depois de uma viagem de trem. Ou mais longe ainda, em Vitória, onde viviam os outros avós. Eram essas as referências de minha geografia infantil – só aos seis anos esse mundo se alargaria, quando nos mudamos para a Argentina.

- É na Espanha, muito longe daqui – disse meu pai.

Fez uma pausa e completou:

- Mas também moram aqui pertinho, que ver? Dentro de um livro.

Levantou-se, foi até a estante, pegou um livro grandalhão, sentou-se numa poltrona e me mostrou. Lá estavam várias figuras dos dois em preto-em-branco.

Saí de perto, porque ele tinha de trabalhar. Mas eu sabia que depois ia ter história. E isso já me deixava feliz.

Não recordo bem o que pensei. Posso ter me distraído com outras coisas. Posso ter lembrado da cantiga de roda que dizia: “Fui na Espanha/ Buscar o meu chapéu/Azul e branco/ Da cor daquele céu...” Afinal, era para lá que eu iria quando chegasse a hora de ouvir a história prometida. A verdade é que não faço a menor idéia. Não sei, há coisas que a memória da gente não guarda. Mas nunca vou esquecer as aventuras de Dom Quixote que meu pai foi me contando aos poucos, com suas próprias palavras, enquanto me mostrava as ilustrações.

Só algum tempo depois eu as reconheceria como bicos-de-pena de Gustavo Doré, ao ler aquelas aventuras por conta própria em outra edição – o Dom Quixote das Crianças, na adaptação de Monteiro Lobato. Lembro dos moinhos de vento, dos rebanhos de carneiros, de Sancho sendo jogado para o alto a partir de uma manta estendida como cama elástica, das surras que o pobre cavaleiro levava, de sua prisão numa jaula transportada por uma carroça... Mas lembro, sobretudo e para sempre, de como eu torcia por aquele herói que queria consertar todos os erros do mundo, ajudar todos os sofredores, defender todos os oprimidos. Em seu esforço para lutar pela justiça e garantir a liberdade, o fidalgo não hesitava em enfrentar os mais tremendos monstros, os mais pérfidos feiticeiros e os mais poderosos encantamentos. Nunca desanimava, mesmo tomando cada surra terrível, quando esses perigos ameaçadores se revelavam apenas alguma coisa comum, dessas que a gente encontra a toda hora no mundo. E então as pessoas achavam que Dom Quixote era maluco, riam dele...

Eu não ria. Metade de mim queria avisar ao cavaleiro: “Fique quieto no seu canto, não vá lá, não, porque não é nada disso que você está pensando...” A outra metade queria ser igual a ele. Até hoje. "(MACHADO, Ana Maria. Como e por que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo, Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 7-10

Espero que tenham gostado e depois trarei o relato de outros escritores e suas primeiras letras.

2 comentários:

  1. Olá.. adorei o relato de Ana Maria Machado. Me proporcionou ideias brilhantes para desenvolver uma avaliação sobre esse portador de texto. Tudo que precisava, obrigada ü

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  2. De nada! Que legal!

    Adoro relatos desse tipo da Ana Maria.
    Esse é só um trechinho, recomendo a leitura do livro, que é todo delicioso.

    Muita inspiração pra ti.
    Abç

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